04 outubro, 2007

O Homem que Escrevia Demais

Desidério, longe de ser um homem comum, é escrevente compulsivo, prolixo e desinteressado da sua produção, vivendo entre párias autistas e aberrações mentais, passa ao largo dos feudos editoriais.
Enquanto a maioria dos seus conhecidos empacava diante de uma lauda em branco, Desidério escrevia sem parar, era sua sina. Não importava o meio, a hora, ou o instrumento, ele via o mundo em parágrafos, frases e capítulos. A coisa era fácil e simplesmente de seus dedos jorravam sujeitos, verbos e predicados enrelaçados entre si. Já tinha escrito em papel higiênico, bula de remédio, mesa de bar, guardanapo, cadeira de igreja, banco de ônibus, areia de praia, até arriscara um poema ao vento. Este estranho costume foi um empecilho natural para o desabrochar de grande círculo de amizades, coisa facilmente compreensível, uma vez que a convivência pública com Desidério era dotada de certos embaraços. 

A qualquer instante ele punha-se a escrever, alheando-se dos amigos presentes. Desta forma, assim como Satanás não prescinde de uns poucos caros amigos, Desidério conseguira manter alguns que lhe aturavam as esquisitices, talvez por terem eles suas próprias vozes internas altissonantes, não se ressentiam com suas aprontadas. Eram legítimos possuidores de transtornos obsessivos compulsivos na leitura e no encimesmamento. Um deles, num serão anos atrás realizado num ambiente adequado regado a muitos livros e folhas soltas, comentou enquanto observava Desidério escrevendo um conto, que seu “modus operandi” dava-se em torrentes semelhantemente àquilo que lembrou ter lido sobre as chuvas de furacão que varrem o Caribe, que caem de forma contínua, contrariando o senso-comum de que a chuva cai em gotas. Doravante os amigos de Desidério passaram a chamá-lo de Torrentes e até esqueceram seu verdadeiro nome.


Torrentes seguia seu curso normal(normal?) de produção: contos, novelas, poesia, crônicas, romances, bilhetes, cartas, notas de rodapé, aforismos, orações, peças, memórias. Sua produção era ínfima comparado ao que lhe ia no cérebro. Não havia corpo humano capaz de suportar tanta escrita. Sua veia literária doía-lhe intumescida e ele não conseguia dar-lhe vazão, por mais que seus músculos se esforçassem, o furo por onde escorria o líquido aliviador não era suficientemente alargado para trazer o êxtase da contemplação normalmente usufruído pelos criadores ao término das suas obras. Seu dia era dedicado ao dedilhar incessante e as suas noites regadas de novas idéias que exigiam desesperadamente o nascer do novo dia.


Qualquer escritor de tamanha prolixia certamente teria preocupações qualitativas, não Torrentes. Este não escrevia pensando nos leitores, ou no quente holofote da mídia. Os tapinhas nas costas dos bajuladores nunca lhe acicataram o espírito. Elogios nunca foram seu combustível de partida. Não dependia da opinião de ninguém e, indiferentemente à recepção da sua obra, continuaria escrevendo açoitado por uma voz interior que lhe assoprava textos inteiros, retilínios, acabados. Não tendo ambições em relação ao futuro leitor, Torrentes também não via como conseqüência natural a publicação dos seus feitos. Os editores não lhe ferviam as expectativas e a antevisão de prateleiras cobertas com seus títulos não lhe causavam friozinho na barriga. Torrentes produzia por maldição, sua literatura era muito mais catarse do que triunfo.



Seus amigos liam avidamente a sua produção, mas nem por isso se poderia afirmar que aquilo era um tremendo sucesso, pois eles liam com igual desvelo bulas de remédio, receitas de bolo, programas de computador, partituras musicais, criptogramas e, um deles, foi pego escondido lendo Paulo Coelho. A estranha simbiose entre as compulsões de escritor e leitores, não impediu uma certa divisão dos naipes afetivos: alguns rasgavam extensos elogios à inspiração de Torrentes comparado-a a própria Musa, outros abominavam-na completamente, mas continuavam freqüentando a casa porque era seu único lazer. Havia também os apáticos e indiferentes que liam com expressão de desdém e, no final, atiravam o papel a esmo.


Sendo apenas escritor e não organizador, produtor, ou editor, Torrentes tinha sua casa permanentemente inundada por um caótico torvelinho de papeis. As coisas não eram arquivadas, nem classificas, nem numeradas e nem encadernadas em volumes. Um romance de 2045 páginas jazia disperso em cima da geladeira, no ropeiro, em baixo do colchão, várias páginas nas prateleiras de livros e algumas folhas ficaram retidas em baixo de tapete. Os poemas, coisas naturalmente pequenas frágeis e ágeis, praticamente voavam por todos os recintos. Diálogos avulsos eram vistos pelos cantos, que tanto podiam pertencer a um compêndio maior, como também não passassem de fragmentos inacabados.


Seus amigos freqüentavam a mixórdia com uma desenvoltura impressionante. Davam-se ao luxo de iniciar suas leituras já no portão e, quiçá, alguns começavam na rua, principalmente em dias de forte vento que dava vôo aos escritos no interior da casa jogando-os pelas janelas afora. Não gozando do benefício de amigos psiquiatricamente saudáveis, Torrentes não auferia das mínimas ajudas, muito bem vindas diante do seu desleixo. Ao contrário, eles a agravavam porque assim como vinham lendo as folhas soltas, largavam-nas onde estivessem tão logo acabassem a leitura. Quase nunca Torrentes tinha tempo para eles. Chegavam e se instalavam numa poltrona qualquer dando continuidade ao seu azo que não havia sido interrompido por cumprimentos fúteis. Assim passavam as horas quentes dos dias de verão, assim se refugiavam nos úmidos dias do inverno, seres desprotegidos e exilados do mundão lá fora.


Torrentes, não sendo orador, falava mais por reticências e engasgos. Inspirava muito para encher os pulmões, mas não lograva igual eficiência na expiração das palavras, que vinham truncadas e anêmicas, como a desculpar-se da fraqueza do fole que as animava. Na fala, era um Fernando Veríssimo piorado. Não fossem seus interlocutores distraidíssimos com suas leituras, certamente ele teria angariado inimigos fortuitamente pela sua falta de tato com as pessoas. Felizmente, ninguém cultiva ódios consistentes contra alguém que não considera em seu perfeito juízo. Torrentes não era levado a sério pelos habitantes do mundo respeitador dos valores da boa família, trabalho dignificante e amor à pátria. No estranho mundo das formalidades, Torrentes era um anão em terra de gigantes.





O fim de Desidério foi o fim de escrever. Não se sabe quem parou primeiro, a vida ou a escrita. Mas nele uma e outra se confundiam, o sopro de uma infundia a chama da outra. Nunca se soube que quilate de escritor ele foi, da sua vasta produção, tudo foi perdido. Seus amigos pouco puderam testemulhar já que, além das dificuldades impostas por seus problemas mentais, seu acesso à literatura de Desidério foi fragmentário, em função do caos reinante na sua casa. Suas folhas soltas, assim como a caudalosa chuva dos furacões, entranhou-se no solo, perdeu-se em baixo de sofás e tapetes, rolou pelas ruas, entupiu bueiros, despedaçou-se em fios elétricos, rasgou-se entre dentes de cães de rua. Um patrimônio que foi arrebatado pelas forças da natureza, regentes dos homens, sob seu olhar indulgente. 

Homens que se recusaram a recolher aqueles tristes restos para tentar espiar pela fresta de uma alma que passou uma vida inteira falando de mundos esculpidos, belos, inebriados de êxtase. Seus amigos, já velhos, saíram de mãos vazias, meio esquecidos da sua perda. Um deles, de mãos nos bolsos, assobiando uma antiga canção dos Beatles, passou distraidamente em cima de uma apócrifa folha manuscrita, rasgando-a parcialmente. Era um dos diálogos avulsos de Torrentes onde o Nada jacta-se do seu poderio certo sobre todas as coisas. A Esperança reconhece a supremacia, mas assevera que, mesmo quando o Nada triunfa e a aniquilação é total, no seio do caos algo sobrevive, uma centelha apenas, e ela é suficiente para que tudo recomece.

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