05 outubro, 2007

Linguagem e Filtragem do Mundo

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O aparecimento da linguagem afeta o espaço e sobretudo o tempo, pois as coisas, as pessoas, os acontecimentos poderão ser evocados, não se reduzindo mais ao imediatamente percebido, que desaparece e reaparece na dependência estrita dos dados sensoriais.

O estabelecimento das sociedades humanas depende fundamentalmente da linguagem e esta, por sua vez, é essencialmente simbólica. Ao desenvolver a função simbólica, não apenas nos tornamos aptos para linguagem, também criamos uma outra forma de percepção do mundo e fomos capazes de conceber a idéia de espaço abstrato. Segundo Cassirer, esta idéia lhe abriu caminho, não só para um novo campo de conhecimento, como também, para uma direção inteiramente nova em sua vida cultural, pois, no caso do espaço abstrato, não estamos lidando com as coisas em si, e sim com proposições e juízos.


Com o pensamento simbólico, o conhecimento do espaço e das relações espaciais pôde ser traduzido para a linguagem numérica. Mediante isto o pensamento geométrico pôde ser concebido de modo muito mais claro e adequado. Aliada à noção de espaço, também precisou ser construída a do tempo. A percepção do tempo, apesar de diferenças marcantes, possui analogias estritas com a noção de espaço e implica, necessariamente, conceitos correspondentes, que não descrevem somente o estado momentâneo, mas consideram o passado e o possível futuro. Para tanto, mais uma vez, a cultura humana se serviu do pensamento simbólico e de uma conseqüente memória simbólica[1].



Graças ao pensamento simbólico nos tornamos capazes não só de repetir experiências como de reconstruí-las através da imaginação e criar a dimensão de futuro. Pensar em futuro é uma característica particularmente humana, ele não se constitui apenas numa imagem, atingindo o estatuto de ideal, que contempla o advento da esperança. No ser humano passa a existir a noção de possibilidades que é transmitida através da linguagem.


Apesar das dificuldades que possa apresentar, o pensamento simbólico é condição para a riqueza da cultura humana. Embora haja estrutura social em diferentes espécies de animais, as sociedades humanas apresentam uma variedade sem igual, dada sua característica de simbolização. Como salienta Becker[2]: "O ser humano tem muitas dimensões – diria, quase infinitas dimensões – na medida em que ele é ou se faz simbólico."


Estas várias dimensões dos seres humanos se manifestam nas suas construções sociais e têm profunda influência no desenvolvimento sócio-cognitivo dos indivíduos. A socialização, de qualquer espécie, é uma característica adaptativa que transcende as respostas individuais, embora dependa delas, possibilitando um nível superior de adaptação de acordo com peculiaridades do comportamento, que permitem a comunicação e interação entre os indivíduos. As sociedades humanas organizam-se, essencialmente, através do uso da linguagem e do estabelecimento de regras, que definem as possibilidades de interação entre os indivíduos.


Piaget conceitua a linguagem como um dos aspectos da função simbólica, no sentido que depende dessa função, ou seja, da capacidade que a criança adquire, por volta de um ano e meio a dois anos, de distinguir o significado do significante, além de toda uma organização espaço-temporal e causal das representações[3].


Becker define o advento da função simbólica como uma revolução que leva as construções do período sensório-motor a uma profunda transformação, significando que uma nova instância organizadora é construída. Essa revolução afeta o espaço e sobretudo o tempo, pois as coisas, as pessoas, os acontecimentos poderão ser evocados, não se reduzindo mais ao imediatamente percebido, que desaparece e reaparece na dependência estrita do quadro perceptivo.


As seqüências de tempo começam a fazer sentido e o alargamento do tempo e do espaço tornam-se possíveis, uma vez que não mais dependem somente do quadro perceptivo. Com a função simbólica a criança se torna capaz de representar as ações, situações e fatos da sua experiência, podendo se referir ao passado através de imagens mentais.

As imagens mentais reproduzem o ambiente em termos de objetos, ações e situações e não se constituem num simples prolongamento das percepções. Elas supõem uma reprodução ativa e esquematizante que resulta da interiorização das imitações de que procedem.

Embora seja a sociedade que permita a construção de conceitos, o indivíduo precisa construir representações conceituais e adquirir a linguagem como condição necessária para interagir de forma a assimilar as influências do meio. Ou seja, o meio social é produto e produtor do comportamento humano, refletindo amplamente nossa condição de animais simbólicos.

É possível ampliar o conceito de meio social e seu papel no desenvolvimento do ser humano, utilizando análises compatíveis com o modelo interacionista. Os conceitos de esquema e de estrutura usados por Piaget permitem elaborar o conceito de filtro. Assim, o desenvolvimento do conceito de filtragem do mundo, enfeixa, não só, os aportes obtidos pela problematização do conceito de meio, e os conhecimentos produzidos em biologia sobre comportamento e desenvolvimento, como também a concepção do ser humano como "animal simbólico".

palavras-chave: animal simbólico, cassirer, becker, socialização

Notas:
[1] Cassirer, 1997,
[2] BECKER, Fernando. Epistemologia genética e conhecimento matemático. In : BECKER, Fernando ; FRANCO, Sérgio (Org.) Cadernos de Autoria: Revisitando Piaget, Porto Alegre : Mediação, 1998, p.25.
[3] Ramozzi-Chiarottino, 1988.

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