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Pensar em processo e em construção significa aceitar imperfeições, confusões, imprecisões, tentativas, redundâncias e neutralidade. Também significa correções, organizações, acertos, simplificações, definições. Além disso envolve agentes causadores, ou seja, os construtores. Pensar a evolução como um processo construtivo envolve tudo isto. Nesse contexto, ela significa transformação e requer agentes além de material sobre o qual eles possam agir. Ação essa, que resulta das relações entre as forças internas (do organismo) e as forças externas ou pressões seletivas (do meio). Já o material sobre o qual ocorre a ação se substancializa como as estruturas orgânicas, entre as quais está a própria molécula de DNA, que contém a informação genética.
A redundância é um excelente material sobre o qual a evolução consegue atuar. Qualquer função vital que esteja restrita a, apenas, um órgão dá à linhagem em que isto ocorre poucas perspectivas de transformação evolutiva. A redundância por si só já representa uma vantagem, uma vez que habilita seus possuidores a adquirirem novas estruturas capazes de adaptá-los aos novos ambientes. No caso dos mamíferos, há indícios fósseis que mostram formas intermediárias com uma segunda articulação entre os ossos dentário e escamosal, possibilitando que elementos da antiga articulação pudessem abandonar sua função anterior transformando-se e transferindo-se para o ouvido, formando os ossículos do ouvido médio – estribo, bigorna e martelo (Gould, 1993)[1]. Em sua nova função, estes pequenos ossos puderam amplificar muito a percepção sonora dos mamíferos em relação aos seus ancestrais répteis, favorecendo a exploração do meio ambiente.
Gould acreditava que foi a redundância generalizada que tornou possível a evolução. Se os organismos fossem idealmente adaptados, com cada parte destinada a cumprir com perfeição determinada função, a evolução não teria como ocorrer, porque nada poderia mudar e a vida se terminaria rapidamente à medida que os ambientes fossem mudando e os organismos fossem incapazes de responder a estas mudanças. Assim, a evolução adquire a flexibilidade que necessita, graças ao desalinho, à redundância e à ausência de uma adequação perfeita. Quando analisamos as alterações cromossômicas numéricas e estruturais, verificamos que os organismos sempre suportam melhor uma anomalia que resulte em excesso do que aquelas que provocam uma perda de DNA. Este é um dos motivos para pensarmos que o material fornecido aos agentes causadores das mudanças evolutivas surge a partir de duplicações de estruturas. Piaget sempre enfatizou que há uma continuidade entre as diferentes estruturas e o funcionamento dos organismos, ou seja, uma heterogeneidade estrutural e continuidade funcional. Ressaltava que se isto de fato ocorresse, e o próprio genoma deveria evoluir.
Quando ele defendia estas idéias não dispúnhamos da capacidade de investigação desenvolvida a partir da década de oitenta com as técnicas moleculares. Neste caso, aceitando a necessidade da redundância como material para evolução, poderemos atestar o acerto dos conceitos piagetianos sobre a evolução do DNA uma vez que no nível molecular observam-se redundâncias sobre as quais os agentes evolutivos pudem agir. Em 1993, o britânico Richard J. Roberts e o norte-americano Philip A. Sharp foram agraciados com o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, por pesquisas independentes que os levaram a descobrir, em 1977, que os genes dos eucariotos[2] nem sempre são contínuos como os genes das bactérias. Ou seja, estes genes podem ter suas mensagens interrompidas por seqüências que se intercalam entre os segmentos gênicos que realmente contém as informações genéticas. Estes pesquisadores denominaram de éxons as porções dos genes que contém a informação que é copiada para a molécula de RNA mensageiro, a qual informa à maquinaria de síntese de proteínas a seqüência de aminoácidos que deverá ser formada. As "interrupções" dos genes, ou porções silenciosas da molécula de DNA, que não são copiadas para o RNA mensageiro e, portanto, não saem do núcleo foram chamadas íntrons.
Estudos decorrentes evidenciaram que: nos mamíferos, embora haja genes contínuos, a maioria possui íntrons; os genes codificadores de uma mesma proteína em espécies diferentes possuem os mesmos éxons e íntrons, revelando sua origem filogenética comum; genes, que codificam proteínas semelhantes em espécies distintas, mostram que a variabilidade nos éxons é muito menor que nos íntrons.
Supõe-se que os íntrons devam constituir-se em uma fonte de diversidade, fornecendo material para produção de novos genes e, portanto, novas proteínas. Os introns revelam, no nível da própria molécula de DNA, um material redundante apropriado para os processos construtivos. Esta “sobra” de material também se constitui numa espécie de imprecisão ou “ruído” da informação, pois necessita ser eliminado no processamento do RNA-mensageiro. Todavia esta imprecisão e material excedente se constituem numa possibilidade intrínseca de novas construções. A partir de 2003, após a conclusão do projeto genoma humano, passou-se a considerar que os íntrons participam dos processos de regulação gênica, possibilitando que um mesmo gene produza RNA mensageiros para diferentes proteínas, algumas das quais com papéis antagônicos. Também está sendo proposto atualmente que uma grande parte do DNA considerado “sem sentido” ou “DNA lixo” seja responsável pela síntese de RNA nucleares capazes de executar funções regulatórias de ativação ou silenciamento de genes. Estes aspectos reforçam a coerência das idéias piagetianas.
O desenvolvimento da inteligência ainda é um campo mais obscuro para a pesquisa humana, mas a hipótese piagetiana que propõe uma continuidade no funcionamento dos processos vitais ou uma "lógica comum" que se repete em diferentes contextos desde o genoma até a inteligência pode nos oferecer pistas para interpretação deste complexo fenômeno. Em síntese, Piaget propunha que as estruturas cognitivas elaboram-se umas a partir das outras, através de reconstruções com avanços. Para Piaget, o mutacionismo clássico, ao deslocar a importância teórica do meio para as estruturas internas do organismo, comprometeu-se em vias e na direção de modelos explicativos, que têm um alcance geral e se encontram, mesmo no campo das funções cognitivas. Como argumentava: "[...]se existe um paralelismo entre a gama de soluções que se distribuem no seio do mutacionismo, entre as idéias de pré-formação e variação fortuita e a série das soluções epistemológicas que conduzem, no campo da análise dos conhecimentos, do apriorismo integral ao convencionalismo puro, o interesse desse paralelismo não reside no seu caráter mais ou menos completo: reside no fato dessa convergência entre maneiras análogas de pensar e colocar os problemas, conduzir a dificuldades semelhantes e pelas mesmas razões” (Piaget, 1978, p. 117) [3].
Ao aceitarmos sua hipótese, não podemos dissociar de modo absoluto o organismo, ou o sujeito, do meio ou dos objetos. Para ele, os fatores endógenos essenciais não consistem em estruturas acabadas ou estáticas. Consistem sim num funcionamento organizador e construtivo que se manifesta na elaboração dessas estruturas, que são variáveis e podem superar-se, incessantemente. Segundo a teoria piagetiana, o pensamento lógico-matemático, por exemplo, não está nem pré-formado no estado de estruturas acabadas no sujeito, nem é extraído dos objetos, mas supõe, nas suas fases iniciais, todo um período de ações e de experiências, no decurso das quais, os objetos são indispensáveis. Nenhuma estrutura cognitiva, é tirada dos objetos, pois são construídas através de elementos operatórios, abstraídos das ações do sujeito sobre estes, desse modo: “Encontramo-nos, assim, na presença de um funcionamento organizador e regulador e o erro do apriorismo foi ter querido traduzi-lo em estruturas de imediato acabadas e ter ignorado que a sua construção é irrealizável sem um conjunto de interações entre o sujeito e os objetos, no decurso das quais as reações destes últimos constituem a ocasião (mas não a causa) das regulações formadoras." (Piaget, 1978 p. 118)
A característica do neo-darwinismo, que Piaget mais criticava, é a interpretação apriorista embutida na sua formulação. Principalmente por levar a reducionismos quando aplicada à interpretação do desenvolvimento da inteligência. Pesquisas recentes evidenciam que o neo-darwinismo clássico é insuficiente para elaboração de uma teoria explicativa sobre evolução, que seja coerente com os dados empíricos. Historicamente, se podem destacar os estudos sobre variação enzimática em populações naturais[4], como uma importante fonte de evidências, que se contrapuseram a algumas idéias clássicas, contribuindo para mudanças significativas nas interpretações sobre as relações entre os organismos e o meio.A partir de 1966, com o desenvolvimento de diferentes técnicas de eletroforese em gel[5], que permitiram a identificação de moléculas com pequenas diferenças, verificou-se que nas populações da maioria das espécies há uma grande quantidade de alozimas, as quais são enzimas que exercem as mesmas funções, mas são codificadas por diferentes alelos de genes que ocupam os mesmos locos. Também se observou que, certos tipos de enzimas com as mesmas funções, eram produzidas por genes de diferentes locos[6].
Ao utilizar as técnicas eletroforéticas em trabalhos de varredura de identificação de enzimas em populações naturais, verificou-se que elas são, em média, heterozigotas para cinco a quinze por cento de seus locos (Saavedra, 1992)[7]. Em conseqüência desta descoberta de extraordinárias quantidades de variação alélica de genes estruturais presente em populações naturais, as pesquisas sobre evolução biológica envolveram-se intensamente com o problema do polimorfismo protéico e sua evolução. Tornara-se acessível aos geneticistas de populações avaliarem, sem ambigüidades, pequenas mudanças hereditárias, que não se manifestavam na forma de alterações "visíveis" como cor, tamanho, quantidade ou forma. Assim, as novas técnicas investigativas ampliaram muito o número de dados passíveis de análise, evidenciando as relações entre genes e proteínas. Parecia, com isto, que seriam solucionados os problemas de campo. Todavia, a grande variabilidade genética presente trouxe novamente o desapontamento, já que para ela as explicações teóricas disponíveis não eram mais suficientes. Conseguira-se a resposta certa para a pergunta errada, uma vez que não se perguntava quanta variabilidade genética havia entre os indivíduos, mas sim, qual era a influência da variação genética para adaptação de uma população. A ambigüidade das observações invadira o campo teórico, tornando o problema mais sério: os modelos de análise disponíveis se tornaram ineficientes. Sob o enfoque da teoria piagetiana, pode-se dizer que surgiu aqui um desequilíbrio cognitivo. As idéias sobre evolução e a relação organismo-meio tiveram que se reconstruir a fim de reequilibrar-se.
Nesse contexto, Lewontin[8] enfatizava que para conhecer a potencialidade de evolução adaptativa da variação genética, era necessário conhecer a relação entre os genes e o organismo, mas isto transcendia os conhecimentos da época sobre desenvolvimento, fisiologia e comportamento, dificultando as possibilidades de análise empírica. De um ponto de vista funcional, o metabolismo, num ambiente variável, apresenta o problema complexo de coordenar e integrar processos metabólicos separados, cada um dos quais pode responder de forma diferente a uma única mudança ambiental. A idéia de que o meio poderia selecionar cada gene em “separado” tornou-se anacrônica.Outra crítica incisiva contra o neodarwinismo surgiu da genética de populações que conferiu uma nova dimensão aos organismos, pois ao enfocar as populações como a unidade da seleção, os organismos passaram a ser vistos como um todo integrado e seu genoma passou a ser considerado em conjunto, surgindo a idéia do contexto genético. Embora, o conceito de unidade de seleção seja controvertido, ele alertou sobre a inutilidade da visão tradicional neodarwinista, que desprezava a estrutura local como nova unidade de mudança populacional que transcende o aporte individual (Hoenigsberg, 1992)[9].Além disso, muitos modelos de seleção foram propostos e evidenciados para determinados locos, mas não para outros, revelando uma complexa forma de interação entre a informação hereditária e o meio.
Na tentativa de compreender a variação genética em populações naturais desenvolveram-se várias teorias e paradigmas, os quais rompiam com a visão estritamente adaptacionista, segundo a qual, toda variação presente estaria refletindo uma melhor adaptação dos indivíduos e conseqüentemente da espécie. Entre as teorias alternativas ao adaptacionismo, destacou-se o paradigma neutralista de Kimura & Ohta, em 1971 [10].
O paradigma neutralista preconizava a irrelevância do valor adaptativo da maioria das mutações, que resultavam em pequenas mudanças de aminoácidos em proteínas, sugerindo que muitas mutações seriam neutras e teriam suas freqüências determinadas por processos aleatórios. Este paradigma estimulou vários debates acadêmicos, a partir dos quais foram se estruturando diversas teorias que tencionam a seleção natural. Segundo os neutralistas, seria incorreto calcular o valor adaptativo como o produto de valores fracionários atribuídos a cada loco em separado, pois se o indivíduo fosse considerado a unidade e objeto da seleção, cada gene contribuiria cumulativamente, ou seja, seria o organismo no seu conjunto que interessaria. Uma versão mais recente da teoria neutralista (Kimura, 1983)[11] preconizava que o polimorfismo protéico refletiria uma fase de transição, em que alelos neutros seriam acumulados e serviriam como matéria prima para fases rápidas de evolução desencadeadas pelo meio.
Aqui, também, podem-se identificar redundâncias e imprecisões como fonte de variabilidade intrínseca, servindo de material para os processos construtivos da evolução. Neste caso deveria haver um papel mais efetivo do meio que definiria a direção das mudanças evolutivas. Contudo, a teoria de Kimura nos coloca uma nova questão: Por que as populações biológicas acumulam alelos alternativos? Somos uma espécie que resultou de um longo processo de evolução biológica. Para os nossos padrões temporais a natureza passa uma idéia de permanência e estabilidade, todavia a vida no planeta Terra já presenciou catástrofes impressionantes como a deriva dos continentes e eras glaciais. Não é descabido pensar que a vida “sabe” que a natureza muda, no sentido de que precisou ser capaz de mudar sem desintegrar-se para continuar. Para estarem aptos a sobreviver, os organismos tornaram-se capazes de suportar mudanças, reequilibrando os desequilíbrios decorrentes de sua relação com o meio. Piaget identifica dois tipos básicos de reequilíbrios que decorrem dos processos de interação entre organismo e meio: a homeostase e a homeorrese, que estão presentes em todos os níveis da organização vital e encontram paralelos no desenvolvimento cognitivo.
A homeostase caracteriza a “permanência”, incluindo as regulações necessárias à manutenção do sistema em interação com um meio relativamente estável. A homeorrese representa a “transformação”, ou um equilíbrio dinâmico decorrente de novas contingências impostas por alterações acentuadas do meio, as quais produzem desequilíbrios tais, que somente uma reconstrução ou reestruturação podem reequilibrar. Neste contexto, os organismos que foram capazes de sobreviver ao logo dos tempos se caracterizaram pela capacidade de acumular material alternativo capaz de responder às mudanças ambientais, desde os níveis moleculares aos orgânicos. Porém a teorias piagetianas vão um pouco além e sugerem que este acúmulo de material excedente não se dá totalmente ao acaso, mas resulta de uma leitura que os organismos fazem do meio a partir de sua interação com ele. Ou seja, Piaget afirmava que se é pelo comportamento que se dá esta interação entre o organismo e o meio, então o comportamento é o motor da evolução.
Notas e referências:
[1]- GOULD, Stephen J. Dedo mindinho e seus vizinhos - ensaios de história natural. São Paulo : Cia das Letras, 1993.
[2]- Eucariotos ou eucariontes são os seres vivos cujas células apresentam o material genético separado do citoplasma por uma membrana chamada carioteca ou membrana nuclear, ou seja células com núcleo verdadeiro.
[3]- PIAGET, Jean Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978.
[4]- Denominamos populações naturais aos grupos de indivíduos, de uma mesma espécie, que vivem num mesmo local. Este termo serve para diferenciá-las das populações criadas em laboratório. São termos necessários para esclarecer com que tipo de indivíduos se está trabalhando, uma vez que no ambiente natural as condições são muito mais variáveis do que em laboratório. Essa necessidade surgiu graças às pesquisas sobre genética de populações que normalmente envolvem organismos capazes de serem criados em laboratório. Este ramo da genética surgiu a partir do estudo de populações da mosca das frutas do gênero Drosophila, que podiam ser mantidas em laboratório ou coletadas diretamente no campo em habitats naturais. A facilidade de manutenção de populações em laboratório, assim como de coleta em campo, fez da Drosophila um dos principais organismos estudados pela genética.
[5]- Eletroforese em gel é uma técnica de migração de proteínas, pela qual é possível a distinção entre heterozigotos e homozigotos para substituições alélicas em diferentes locos.
[6]- Tais enzimas são chamadas isosímas.
[7]- SAAVEDRA, Carmen C. R. Heterogeneidade Ambiental e variabilidade isoenzimática de populações de Drosophila maculifrons em comunidades dinamicamente diferenciadas, Porto Alegre : UFRGS, 1992. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Biociências. Curso de Pós-Graduação em Genética.
[8]- LEWONTIN, Rubbie C. The genetic basis of evolutionary change. New York ; London : Columbia University Press, 1974.
[9]- HOENIGSBERG, Hugo. Genética de poblaciones, Santafé de Bogotá, Geminés, 1992.
[10]- KIMURA, M. ; OTHA, T. Protein polymorphism as a phase of molecular evolution. Nature. London, n. 229, p. 467-469, 1971.
[11]- KIMURA, M. The neutral theory of molecular evolution, In : NEI, M. and KOEHN (Eds.). Evolution of genes and proteins. Suderland : Sinauer, p. 208-233, 1983.
palavras-chave: Evolução, construção, Piaget, neutralismo, genética de populações
Gould acreditava que foi a redundância generalizada que tornou possível a evolução. Se os organismos fossem idealmente adaptados, com cada parte destinada a cumprir com perfeição determinada função, a evolução não teria como ocorrer, porque nada poderia mudar e a vida se terminaria rapidamente à medida que os ambientes fossem mudando e os organismos fossem incapazes de responder a estas mudanças. Assim, a evolução adquire a flexibilidade que necessita, graças ao desalinho, à redundância e à ausência de uma adequação perfeita. Quando analisamos as alterações cromossômicas numéricas e estruturais, verificamos que os organismos sempre suportam melhor uma anomalia que resulte em excesso do que aquelas que provocam uma perda de DNA. Este é um dos motivos para pensarmos que o material fornecido aos agentes causadores das mudanças evolutivas surge a partir de duplicações de estruturas. Piaget sempre enfatizou que há uma continuidade entre as diferentes estruturas e o funcionamento dos organismos, ou seja, uma heterogeneidade estrutural e continuidade funcional. Ressaltava que se isto de fato ocorresse, e o próprio genoma deveria evoluir.
Quando ele defendia estas idéias não dispúnhamos da capacidade de investigação desenvolvida a partir da década de oitenta com as técnicas moleculares. Neste caso, aceitando a necessidade da redundância como material para evolução, poderemos atestar o acerto dos conceitos piagetianos sobre a evolução do DNA uma vez que no nível molecular observam-se redundâncias sobre as quais os agentes evolutivos pudem agir. Em 1993, o britânico Richard J. Roberts e o norte-americano Philip A. Sharp foram agraciados com o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, por pesquisas independentes que os levaram a descobrir, em 1977, que os genes dos eucariotos[2] nem sempre são contínuos como os genes das bactérias. Ou seja, estes genes podem ter suas mensagens interrompidas por seqüências que se intercalam entre os segmentos gênicos que realmente contém as informações genéticas. Estes pesquisadores denominaram de éxons as porções dos genes que contém a informação que é copiada para a molécula de RNA mensageiro, a qual informa à maquinaria de síntese de proteínas a seqüência de aminoácidos que deverá ser formada. As "interrupções" dos genes, ou porções silenciosas da molécula de DNA, que não são copiadas para o RNA mensageiro e, portanto, não saem do núcleo foram chamadas íntrons.
Estudos decorrentes evidenciaram que: nos mamíferos, embora haja genes contínuos, a maioria possui íntrons; os genes codificadores de uma mesma proteína em espécies diferentes possuem os mesmos éxons e íntrons, revelando sua origem filogenética comum; genes, que codificam proteínas semelhantes em espécies distintas, mostram que a variabilidade nos éxons é muito menor que nos íntrons.
Supõe-se que os íntrons devam constituir-se em uma fonte de diversidade, fornecendo material para produção de novos genes e, portanto, novas proteínas. Os introns revelam, no nível da própria molécula de DNA, um material redundante apropriado para os processos construtivos. Esta “sobra” de material também se constitui numa espécie de imprecisão ou “ruído” da informação, pois necessita ser eliminado no processamento do RNA-mensageiro. Todavia esta imprecisão e material excedente se constituem numa possibilidade intrínseca de novas construções. A partir de 2003, após a conclusão do projeto genoma humano, passou-se a considerar que os íntrons participam dos processos de regulação gênica, possibilitando que um mesmo gene produza RNA mensageiros para diferentes proteínas, algumas das quais com papéis antagônicos. Também está sendo proposto atualmente que uma grande parte do DNA considerado “sem sentido” ou “DNA lixo” seja responsável pela síntese de RNA nucleares capazes de executar funções regulatórias de ativação ou silenciamento de genes. Estes aspectos reforçam a coerência das idéias piagetianas.
O desenvolvimento da inteligência ainda é um campo mais obscuro para a pesquisa humana, mas a hipótese piagetiana que propõe uma continuidade no funcionamento dos processos vitais ou uma "lógica comum" que se repete em diferentes contextos desde o genoma até a inteligência pode nos oferecer pistas para interpretação deste complexo fenômeno. Em síntese, Piaget propunha que as estruturas cognitivas elaboram-se umas a partir das outras, através de reconstruções com avanços. Para Piaget, o mutacionismo clássico, ao deslocar a importância teórica do meio para as estruturas internas do organismo, comprometeu-se em vias e na direção de modelos explicativos, que têm um alcance geral e se encontram, mesmo no campo das funções cognitivas. Como argumentava: "[...]se existe um paralelismo entre a gama de soluções que se distribuem no seio do mutacionismo, entre as idéias de pré-formação e variação fortuita e a série das soluções epistemológicas que conduzem, no campo da análise dos conhecimentos, do apriorismo integral ao convencionalismo puro, o interesse desse paralelismo não reside no seu caráter mais ou menos completo: reside no fato dessa convergência entre maneiras análogas de pensar e colocar os problemas, conduzir a dificuldades semelhantes e pelas mesmas razões” (Piaget, 1978, p. 117) [3].
Ao aceitarmos sua hipótese, não podemos dissociar de modo absoluto o organismo, ou o sujeito, do meio ou dos objetos. Para ele, os fatores endógenos essenciais não consistem em estruturas acabadas ou estáticas. Consistem sim num funcionamento organizador e construtivo que se manifesta na elaboração dessas estruturas, que são variáveis e podem superar-se, incessantemente. Segundo a teoria piagetiana, o pensamento lógico-matemático, por exemplo, não está nem pré-formado no estado de estruturas acabadas no sujeito, nem é extraído dos objetos, mas supõe, nas suas fases iniciais, todo um período de ações e de experiências, no decurso das quais, os objetos são indispensáveis. Nenhuma estrutura cognitiva, é tirada dos objetos, pois são construídas através de elementos operatórios, abstraídos das ações do sujeito sobre estes, desse modo: “Encontramo-nos, assim, na presença de um funcionamento organizador e regulador e o erro do apriorismo foi ter querido traduzi-lo em estruturas de imediato acabadas e ter ignorado que a sua construção é irrealizável sem um conjunto de interações entre o sujeito e os objetos, no decurso das quais as reações destes últimos constituem a ocasião (mas não a causa) das regulações formadoras." (Piaget, 1978 p. 118)
A característica do neo-darwinismo, que Piaget mais criticava, é a interpretação apriorista embutida na sua formulação. Principalmente por levar a reducionismos quando aplicada à interpretação do desenvolvimento da inteligência. Pesquisas recentes evidenciam que o neo-darwinismo clássico é insuficiente para elaboração de uma teoria explicativa sobre evolução, que seja coerente com os dados empíricos. Historicamente, se podem destacar os estudos sobre variação enzimática em populações naturais[4], como uma importante fonte de evidências, que se contrapuseram a algumas idéias clássicas, contribuindo para mudanças significativas nas interpretações sobre as relações entre os organismos e o meio.A partir de 1966, com o desenvolvimento de diferentes técnicas de eletroforese em gel[5], que permitiram a identificação de moléculas com pequenas diferenças, verificou-se que nas populações da maioria das espécies há uma grande quantidade de alozimas, as quais são enzimas que exercem as mesmas funções, mas são codificadas por diferentes alelos de genes que ocupam os mesmos locos. Também se observou que, certos tipos de enzimas com as mesmas funções, eram produzidas por genes de diferentes locos[6].
Ao utilizar as técnicas eletroforéticas em trabalhos de varredura de identificação de enzimas em populações naturais, verificou-se que elas são, em média, heterozigotas para cinco a quinze por cento de seus locos (Saavedra, 1992)[7]. Em conseqüência desta descoberta de extraordinárias quantidades de variação alélica de genes estruturais presente em populações naturais, as pesquisas sobre evolução biológica envolveram-se intensamente com o problema do polimorfismo protéico e sua evolução. Tornara-se acessível aos geneticistas de populações avaliarem, sem ambigüidades, pequenas mudanças hereditárias, que não se manifestavam na forma de alterações "visíveis" como cor, tamanho, quantidade ou forma. Assim, as novas técnicas investigativas ampliaram muito o número de dados passíveis de análise, evidenciando as relações entre genes e proteínas. Parecia, com isto, que seriam solucionados os problemas de campo. Todavia, a grande variabilidade genética presente trouxe novamente o desapontamento, já que para ela as explicações teóricas disponíveis não eram mais suficientes. Conseguira-se a resposta certa para a pergunta errada, uma vez que não se perguntava quanta variabilidade genética havia entre os indivíduos, mas sim, qual era a influência da variação genética para adaptação de uma população. A ambigüidade das observações invadira o campo teórico, tornando o problema mais sério: os modelos de análise disponíveis se tornaram ineficientes. Sob o enfoque da teoria piagetiana, pode-se dizer que surgiu aqui um desequilíbrio cognitivo. As idéias sobre evolução e a relação organismo-meio tiveram que se reconstruir a fim de reequilibrar-se.
Nesse contexto, Lewontin[8] enfatizava que para conhecer a potencialidade de evolução adaptativa da variação genética, era necessário conhecer a relação entre os genes e o organismo, mas isto transcendia os conhecimentos da época sobre desenvolvimento, fisiologia e comportamento, dificultando as possibilidades de análise empírica. De um ponto de vista funcional, o metabolismo, num ambiente variável, apresenta o problema complexo de coordenar e integrar processos metabólicos separados, cada um dos quais pode responder de forma diferente a uma única mudança ambiental. A idéia de que o meio poderia selecionar cada gene em “separado” tornou-se anacrônica.Outra crítica incisiva contra o neodarwinismo surgiu da genética de populações que conferiu uma nova dimensão aos organismos, pois ao enfocar as populações como a unidade da seleção, os organismos passaram a ser vistos como um todo integrado e seu genoma passou a ser considerado em conjunto, surgindo a idéia do contexto genético. Embora, o conceito de unidade de seleção seja controvertido, ele alertou sobre a inutilidade da visão tradicional neodarwinista, que desprezava a estrutura local como nova unidade de mudança populacional que transcende o aporte individual (Hoenigsberg, 1992)[9].Além disso, muitos modelos de seleção foram propostos e evidenciados para determinados locos, mas não para outros, revelando uma complexa forma de interação entre a informação hereditária e o meio.
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O paradigma neutralista preconizava a irrelevância do valor adaptativo da maioria das mutações, que resultavam em pequenas mudanças de aminoácidos em proteínas, sugerindo que muitas mutações seriam neutras e teriam suas freqüências determinadas por processos aleatórios. Este paradigma estimulou vários debates acadêmicos, a partir dos quais foram se estruturando diversas teorias que tencionam a seleção natural. Segundo os neutralistas, seria incorreto calcular o valor adaptativo como o produto de valores fracionários atribuídos a cada loco em separado, pois se o indivíduo fosse considerado a unidade e objeto da seleção, cada gene contribuiria cumulativamente, ou seja, seria o organismo no seu conjunto que interessaria. Uma versão mais recente da teoria neutralista (Kimura, 1983)[11] preconizava que o polimorfismo protéico refletiria uma fase de transição, em que alelos neutros seriam acumulados e serviriam como matéria prima para fases rápidas de evolução desencadeadas pelo meio.
Aqui, também, podem-se identificar redundâncias e imprecisões como fonte de variabilidade intrínseca, servindo de material para os processos construtivos da evolução. Neste caso deveria haver um papel mais efetivo do meio que definiria a direção das mudanças evolutivas. Contudo, a teoria de Kimura nos coloca uma nova questão: Por que as populações biológicas acumulam alelos alternativos? Somos uma espécie que resultou de um longo processo de evolução biológica. Para os nossos padrões temporais a natureza passa uma idéia de permanência e estabilidade, todavia a vida no planeta Terra já presenciou catástrofes impressionantes como a deriva dos continentes e eras glaciais. Não é descabido pensar que a vida “sabe” que a natureza muda, no sentido de que precisou ser capaz de mudar sem desintegrar-se para continuar. Para estarem aptos a sobreviver, os organismos tornaram-se capazes de suportar mudanças, reequilibrando os desequilíbrios decorrentes de sua relação com o meio. Piaget identifica dois tipos básicos de reequilíbrios que decorrem dos processos de interação entre organismo e meio: a homeostase e a homeorrese, que estão presentes em todos os níveis da organização vital e encontram paralelos no desenvolvimento cognitivo.
A homeostase caracteriza a “permanência”, incluindo as regulações necessárias à manutenção do sistema em interação com um meio relativamente estável. A homeorrese representa a “transformação”, ou um equilíbrio dinâmico decorrente de novas contingências impostas por alterações acentuadas do meio, as quais produzem desequilíbrios tais, que somente uma reconstrução ou reestruturação podem reequilibrar. Neste contexto, os organismos que foram capazes de sobreviver ao logo dos tempos se caracterizaram pela capacidade de acumular material alternativo capaz de responder às mudanças ambientais, desde os níveis moleculares aos orgânicos. Porém a teorias piagetianas vão um pouco além e sugerem que este acúmulo de material excedente não se dá totalmente ao acaso, mas resulta de uma leitura que os organismos fazem do meio a partir de sua interação com ele. Ou seja, Piaget afirmava que se é pelo comportamento que se dá esta interação entre o organismo e o meio, então o comportamento é o motor da evolução.
Notas e referências:
[1]- GOULD, Stephen J. Dedo mindinho e seus vizinhos - ensaios de história natural. São Paulo : Cia das Letras, 1993.
[2]- Eucariotos ou eucariontes são os seres vivos cujas células apresentam o material genético separado do citoplasma por uma membrana chamada carioteca ou membrana nuclear, ou seja células com núcleo verdadeiro.
[3]- PIAGET, Jean Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978.
[4]- Denominamos populações naturais aos grupos de indivíduos, de uma mesma espécie, que vivem num mesmo local. Este termo serve para diferenciá-las das populações criadas em laboratório. São termos necessários para esclarecer com que tipo de indivíduos se está trabalhando, uma vez que no ambiente natural as condições são muito mais variáveis do que em laboratório. Essa necessidade surgiu graças às pesquisas sobre genética de populações que normalmente envolvem organismos capazes de serem criados em laboratório. Este ramo da genética surgiu a partir do estudo de populações da mosca das frutas do gênero Drosophila, que podiam ser mantidas em laboratório ou coletadas diretamente no campo em habitats naturais. A facilidade de manutenção de populações em laboratório, assim como de coleta em campo, fez da Drosophila um dos principais organismos estudados pela genética.
[5]- Eletroforese em gel é uma técnica de migração de proteínas, pela qual é possível a distinção entre heterozigotos e homozigotos para substituições alélicas em diferentes locos.
[6]- Tais enzimas são chamadas isosímas.
[7]- SAAVEDRA, Carmen C. R. Heterogeneidade Ambiental e variabilidade isoenzimática de populações de Drosophila maculifrons em comunidades dinamicamente diferenciadas, Porto Alegre : UFRGS, 1992. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Biociências. Curso de Pós-Graduação em Genética.
[8]- LEWONTIN, Rubbie C. The genetic basis of evolutionary change. New York ; London : Columbia University Press, 1974.
[9]- HOENIGSBERG, Hugo. Genética de poblaciones, Santafé de Bogotá, Geminés, 1992.
[10]- KIMURA, M. ; OTHA, T. Protein polymorphism as a phase of molecular evolution. Nature. London, n. 229, p. 467-469, 1971.
[11]- KIMURA, M. The neutral theory of molecular evolution, In : NEI, M. and KOEHN (Eds.). Evolution of genes and proteins. Suderland : Sinauer, p. 208-233, 1983.
palavras-chave: Evolução, construção, Piaget, neutralismo, genética de populações
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