02 outubro, 2007

Biologia do Conhecimento

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A existência de janelas de comunicação entre o organismo e o meio desde o nível molecular até o cognitivo contrapõem frontalmente o conceito de ser humano independente em relação ao meio.

Piaget em suas reflexões sobre a biologia do conhecimento[1] salienta que:
[...] todos os filósofos interessados no absoluto, recorrem a um sujeito transcendental, que ultrapassa o homem e sobretudo a `natureza’, de modo a situar a verdade para além das contingências espaço temporais e físicas, tornando essa natureza inteligível numa perspectiva intemporal ou eterna. Mas, a questão é saber se é possível saltar sobre a sua sombra, e atingir o `sujeito em si’, sem que continue, apesar de tudo, `humano, demasiado humano`, como dizia Nietzsche. (Piaget, 1978, p.339)
 

Dada a sua complexidade, o ser humano é afetado pelo ambiente em seus aspectos biológicos, sociológicos e psicológicos, pois ele se desenvolve através de um processo contínuo de interação entre o organismo e o meio.

A fim de compreendermos o papel das relações entre o organismo e meio para o desenvolvimento cognitivo vamos aprofundar o significado do conceito de interação, a partir das análises de Piaget e abordar os processos de filtragem, quer nos seus níveis biológicos fundamentais, quer nos seus aspectos cognitivos e sociais, através dos quais se dá essa interação.


Destes dois pontos de partida deriva uma abordagem de meio, a partir de uma perspectiva interacionista, que o problematiza para além dos seus componentes naturais, construídos e sociais, rompendo com uma visão dicotômica entre homem e natureza. Esta dicotomia pode ser apontada como um pressuposto filosófico, que cria enormes entraves para uma melhor relação do ser humano com o mundo natural, fazendo com que os descompassos entre os sistemas naturais e os sistemas culturais, sejam de tal ordem que colocam em risco a própria continuidade da vida. Tal crise exige um sério esforço de reflexão e de educação, capaz de pensar a espécie humana e a natureza em conjunto. De forma muito difundida a natureza é vista apenas como um lugar aonde os eventos naturais ou culturais acontecem. Lugar esse, que parece não ter vida, se constituindo apenas numa fonte inesgotável de riquezas.

Segundo Grün[2](1994), a educação na modernidade foi pensada como um processo, cujo objetivo maior era a conquista da natureza e a busca do conhecimento e se dava às custas da ruptura com o mundo natural. Para o autor, este é o legado de Descartes à educação moderna. O projeto cartesiano de ciência visa reduzir a diversidade das coisas à medida comum, a fim de possibilitar a relação entre elas, tornando-as comparáveis.

As pessoas estão separadas da natureza, de tal forma, que ao serem chamadas de “animais”, se ofendem. Thomas[3] (1988) explica que, ao traçar uma sólida linha divisória entre o homem e os animais, o principal propósito dos pensadores do início do período moderno, era justificar a caça, a domesticação, o hábito de comer carne, o extermínio sistemático de animais nocivos ou predadores e a vivissecção[4], que se tornara prática científica no fim do século XVII. Todavia, o autor ressalta que a insistência tão grande em distinguir o humano do animal, teve sérias conseqüências para as relações entre os homens. De forma que, se a essência da humanidade era definida como consistindo em alguma qualidade específica, seguia-se, então, que qualquer homem, que não demonstrasse tal qualidade seria sub-humano ou semi-animal. Assim, no início da era moderna, não era incomum encontrar grupos humanos, para quem, qualquer um que não pertencesse à sua seita era visto como um animal sem alma.

Entre os primeiros exploradores europeus, era comum encontrar quem julgasse povos de outras culturas, como seres humanos brutos, sem arte e sem lei, que mal podiam ser distinguidos dos animais, sendo por vezes, julgados como menos do que animais. Os séculos XVII e XVIII ouviram muitos discursos sobre a natureza animal dos negros, sobre sua sexualidade animalesca e sua natureza brutal. De modo geral os índios americanos não eram vistos dessa forma, mas, às vezes, também eram descritos com palavras semelhantes. Havia mesmo, quem comparasse os bebês aos animais, por não terem controle de suas ações e sua linguagem não diferia de muitos animais e, em geral, se comportavam como asnos selvagens e novilhos bravios. Também as mulheres estavam perto do estado animal. Os ginecologistas da época, davam muita ênfase aos aspectos animais do parto, referindo-se às mulheres grávidas como procriadoras. Até o século XVIII, o ato de amamentar os bebês costumava ser visto, pelas classes dominantes, como uma atividade degradante, que devia ser evitada, quando possível (Thomas, 1988).


Muitos preceitos filosóficos do início da modernidade já foram superados, todavia ainda é uma ofensa, relativamente comum, chamar a outrem de animal. Isto reflete esta dicotomia entre o ser humano e aquilo que se convencionou chamar de mundo natural.

Entre outros autores, ao longo de sua obra, Piaget utiliza o conceito de interação para romper com esta dicotomia, além disso ele se contrapõe a uma visão mecanicista da matéria viva, jamais interpretando qualquer ser vivo como se fosse uma máquina, que pudesse ser reduzida aos seus menores constituintes. Sua abordagem dos organismos vivos sempre busca destacar o organismo no seu conjunto e em funcionamento. Seu interesse principal, recai, justamente no comportamento, que é uma forma complexa de interação organismo/meio, cuja função principal, é a sobrevivência dos seres vivos.

Ao confrontar a teoria interacionista de Piaget com dados da biologia molecular, podemos ver que suas críticas ao reducionismo interpretativo das explicações biológicas de primado do organismo sobre o meio, realizadas nas décadas de sessenta, se ajustam às descobertas recentes, que já não interpretam mais os seres vivos como se estivessem isolados do meio em relação à sua informação hereditária. Há “janelas” de comunicação entre organismo e meio desde os níveis moleculares até o cognitivo. Isto se contrapõe frontalmente ao conceito de ser humano autônomo e independente em relação ao meio.
As abordagens da teoria piagetiana contribuem para uma ruptura com a influência do pensamento cartesiano. Pensamento esse que, segundo Grün (1994), não se limita apenas à pesquisa teórica e experimental das universidades, se fazendo presente no currículo das escolas na forma de padrões culturais, os quais perpassam a educação das séries iniciais à universidade e assumem a forma de mitos.

É preciso desfazer o mito antropocêntrico que separa o ser humano da natureza e o considera autônomo. Desse ângulo, o ser humano é considerado o centro de tudo e todas as outras coisas parecem existir em função dele. Este mito pode ser apontado como uma das principais causas para a manutenção da crise ecológica mundial.Tudo o que somos, fazemos e pensamos, está intimamente implicado com as formas de relações, que estabelecemos com o meio. Todavia, não seria possível a manutenção dos sistemas biológicos se não fossem estabelecidos limites a esta interação, desde os níveis elementares aos cognitivos. Tais limites cognitivos estabelecidos entre e o sujeito e o objeto envolvem também uma seleção ou filtragem.
CONTINUA...


Referências e Notas:
(1)PIAGET, Jean. [1967] Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978.
(2)GRÜN, Mauro. Uma discussão sobre valores éticos em educação ambiental. Educação e Realidade Porto Alegre, v. 19, n. 2, p. 171-196, jul./dez. 1994.
(3)THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo : Companhia da Letras, 1988.
(4)Operação feita em animais vivos para estudo de fenômenos fisiológicos.


Fonte da Imagem do Livro de Keith Thomas por Sebo do Messias

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