25 setembro, 2007

Vivendo o Êxtase

Através da música se pode vivenciar a linguagem dos Deuses, o êxtase em que o canto submerge o significado da fala.
Uma fuga é um movimento tensionante de energia sonora que se opõem e contrapõe ao longo do tempo. É uma idéia básica que se repete, se inverte e se altera tonalmente, solando ora na voz dominante, ora nas secundárias. Quando as vozes cantam juntas, uma expõe o tema enquanto a outra tece arabescos que enriquecem o discurso, não restrita à condição subalterna de acompanhamento, mas mantendo seu caráter autônomo, num esquema de nota contra nota, conhecido como contraponto. O resultado disto para um ouvido capaz de realizar as devidas separações da massa sonora, é a “visualização” separada da voz concertante do momento, da voz secundária entretida nos seus comentários e uma linha de baixo contínuo que fornece o suporte harmônico ao edifício polifônico. A fuga é um estado de tensão tonal que se espicha e se contrai transferindo ao ouvinte um misto de prazer e necessidade de repouso, que é para onde ela finalmente conduz. Ao final, ao superar o derradeiro clímax tensionante, ela mergulha em direção à resolução tonal do discurso, onde as vozes se fundem em uníssono para entoar o júbilo da conclusão.

Os antigos não compuseram música como meio de ostentação dos seus dotes criativos. Ambicionaram mais, quiseram interpretar humanamente a língua dos deuses. Há atavicamente submersa na lembrança humana uma convicção de que nos paraísos a lingua é musical. Quando alguém experimenta um estado de consciência próximo ao êxtase, chega ao fato surpreendente de que é mais natural cantar do que falar.

... De repente, os convidados perceberam que estavam cantando alegremente, como se cantar fosse mais fácil e natural que conversar. (J.R.R Tolkien, Senhor dos Anéis I,p190,Martins Fontes,1994)

A experiência do júbilo reativa lembranças adormecidas da primeira língua, possível herança dos deuses, cujos fonemas não eram falados em sim entoados. Fiéis às tradições que unem irremediavelmente música, expressão e dança, os compositores procuravam o substrato para as suas composições mais no terreno das relações astrológicas e das proporções numéricas perfeitas, do que nas propensões do ego, mais sedento de aplausos da contemporaneidade, do que na remota possibilidade de reabilitação depois do anonimato dos séculos, como sucedeu com J.S. Bach, cuja obra foi considerada “velha” no seu tempo e que no século XX esteve na boca dos “Single Singers” em arranjos vocais jazzísticos, ou se prestando aos timbres dos sintetizadores eletrônicos, como na trilha sonora do filme “A Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick, assinada por Walter Carlos. Bach, mesmo tendo se atido formalmente aos cânones da sua época, trouxe ao presente um frescor pulsante que remete a “blues”, rock progressivo, jazz, em composições que saltam das amarelecidas páginas dos séculos XVII e XVIII em cores nitidamente atuais, num impressionante contraste com a maioria dos seus conterrâneos que, no máximo, permanecem como verbetes nos compêndios de história da música.
CONTINUA...

palavras-chave: Tolkien, composição, laranja mecânica, tensão harmônica

Por: Isaias Malta
Fonte da Ilustração: Bento Jesus Caraça

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