26 setembro, 2007

A visão celestial

Dos pecadores representados no quadro “O Juízo Final” do pintor Holandês medieval Hieronymus Bosch, um dos que chafurdam na lama eleva seus olhos ao céu e percebe o ressoar das trombetas dos quatro anjos.

Os dois tipos de surdos, os de ouvidos e os perceptuais, por desgraça nascem predestinados a nunca poderem se maravilhar com a magia dos sons. Na mitologia de todos os povos, o universo foi criado pelo verbo. Ora, verbo é o entoar da língua criadora. As antigas tradições relatam que o poder da primeira língua ia além da sua instância simbólica, nela a coisa dita era o mesmo que coisa criada. Destarte, segundo as mitologias, a vida e a morte eram determinadas pelo poder criador do verbo, inclusive a materialização de objetos. 

Depois da confusão lingüística representada miticamente pela torre de babel, as línguas perderam sua imediatez, lhes restando o conteúdo simbólico, mas alguns vestígios da primeira língua permaneceram confinados aos ofícios dos templos, às invocações mágicas, aos mantrams entoados por monges, a poucas palavras que, no entanto, necessitam da força da vontade para superar a vacuidade da fala comum. 

O surdo ignora a malícia embutida nos sutis falseamentos da voz que mente. Ignora o embargamento vocal sob fortes emoções. Ignora o som cristalino das risadas das crianças enquanto brincam sob o verde arbóreo das tardes de verão. Ignora o tremular das vozes de alguns velhos que se apegam a medos crescentes. Ignora o uivo do vento campeando por entre os prédios nos cinzentos dias de inverno.

Desde a plena audição até a surdez completa, o nível de interesses determinará a qualidade do alimento a ser absorvido pelos ouvidos. Alguns dedicam seus ouvidos à música feita de gemidos entrecortados do funk. Outros se focam na música “dor de cotovelo” tematizada pelas frustrações amorosas. Outros se realizam no gênero heavy metal onde o prazer auferido é diretamente proporcional à capacidade dos amplificadores de despejar milhares de watts em robustos autofalantes.

Independentemente do gosto musical de cada um, o sentido da audição é altamente seletivo, tornando os ouvintes ora surdos, ora receptivos, dependendo do interesse. Audição é riqueza e prisão. Os surdos aos sons divinos são aqueles da pior espécie, porque sua surdez é produto de escolha. Analogamente aos surdos voluntários, há os cegos por seleção do olhar representados no quadro “O Juízo Final” do pintor Holandês medieval Hieronymus Bosch. 


Dos pecadores que chafurdam na lama dos seus sofrimentos, todos têm seus olhos presos ao rés das suas mesquinharias e torturas, à exceção de um deles localizado no meio da extremidade esquerda do quadro. Ele agora está sendo ajudado por um anjo porque, mesmo estando semi afundado, conseguiu elevar seus olhos aos céus e, certamente seus ouvidos devem ter captado o ressoar das trombetas dos quatro anjos que ressoam a esquerda e a direita da visão celestial. FIM 


palavras-chave: Hieronymus Bosch, mitologia, heavy metal, verbo

Por: Isaias Malta

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