25 setembro, 2007

Surdez Harmônica


O surdo harmônico, por ser incapaz de distinguir o envelope melódico em estruturas sonoras complexas, está condenado a vida inteira a ouvir todo o tipo de música como se fosse de elevador.

No mundo urbano em que o ruído é ferramenta de venda, alerta, construção, destruição, transporte, etc, a epidemia da surdez surgiu como resposta dos frágeis mecanismos de audição. Apesar da sua eficiente proteção, encapsulados dentro de ossos na cabeça, o sistema auditivo tem suas defesas minadas e acaba ruindo sob as insistentes violências. 

Os aparatos cada vez mais robustos de amplificação sonora produzem perdas cada vez maiores da sensibilidade auditiva humana. Num ambiente em que os “beeps” eletrônicos nos espaços públicos disputam aos berros o espectro sonoro com a gritaria das britadeiras e motores a explosão, é cada vez maior a necessidade de amplificar a música das gravações. Ruídos sobrepujando-se uns aos outros numa cacofonia atordoante. 

Tal é a radiografia dos grandes centros urbanos, onde o ouvinte, possuidor de frágeis mecanismos de audição, sucumbe ao longo do tempo sob o caos sonoro e se torna progressivamente um zumbi indiferente.


Ao mesmo tempo em que a surdez confere aos surdos o entorpecimento do silêncio das cavernas, os afasta dos cânticos dos anjos. Viver uma vida inteira sem ter derramado lágrimas sob as intensas torrentes sonoras emanadas das catedrais harmônicas de Bach, é como ter respirado meio ar. 


Há surdos de todas as naturezas, há os que sofrem de amusia, insensibilidade completa à música, mesmo tendo o aparelho auditivo em funcionamento. São os surdos perceptivos que jamais desenvolveram a percepção musical. Por algum motivo desconhecido não conseguiram estabelecer juízos hierárquicos de valor entre um encadeamento de notas e os ruídos aleatórios do meio ambiente. 

Há os surdos harmônicos, aqueles que sintetizam o contorno melódico, mas não separam os naipes instrumentais de uma orquestra sinfônica. Enquanto o ouvinte harmônico tem o poder de distinguir várias linhas melódicas sobrepostas, o surdo integra tudo num pacote, reduzindo a zero a possibilidade de contemplação das margens do tema central que, mesmo sem estar protagonizando o discurso, não diminui seu potencial de apreciação. O problema do surdo harmônico se dá com as músicas estruturalmente complexas, onde há um mascaramento do seu conteúdo melódico. Assim, a redução a um único envelope melódico torna-se impossível, talvez até porque o autor o tenha propositalmente escamoteado.

O real prazer da audição não está apenas na síntese do todo sonoro, mas na decomposição das partes numa espécie de esquizofrenia perceptual. O surdo harmônico estará afastado durante a sua vida das grandes construções harmônicas e passará insensível mesmo pelos mais canhestros arranjos presentes na maioria das músicas populares.
CONTINUA...

Por Isaías Malta

2 comentários:

  1. É uma tese de mestrado? Achei muito interessante... parabéns!

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  2. Anônimo29/6/10

    Emerson,
    não é uma tese, são apenas palavras deitadas à toa.

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