28 setembro, 2007

O Trunfo dos Violinistas

A frustração do pianista de não ter o direito do refúgio dos últimos instantes de intimidade com seu instrumento afinando-o, assim como fazem os violinistas.
Como estudante de piano e amante de instrumentos de teclado, tenho uma frustração íntima que se manifesta antes de executar uma peça em público; a impossibilidade de usar o a afinação como pretexto para adquirir a confiança necessária. O pianista ao sentar já está teoricamente pronto, e não é dada a ele o direito de “testar” alguns sons para quebrar o silêncio ensurdecedor de expectativa que enche a sala, antes que os primeiros acordes titubeantes irrompam o ambiente.

Que inveja dos violinistas e toda sua liberdade de afinar publicamente, pois enquanto emitem os costumeiros guinchos, se tranqüilizam ante quaisquer sons posteriores, que serão melhores do que aqueles ora produzidos. Enquanto acobertados pelos ruídos, os violinistas adquirem o que os pianistas nunca terão: um pequeno instante de cumplicidade com seu instrumento - de reafirmação e dominação – quando ninguém terá dúvidas de quem é o mestre.

Para ilustrar as minhas aflições, recorro a uma passagem do livro “A Consciência de Zeno”, que ilustra a diferença entre os intérpretes de instrumentos temperados e os não temperados, estes capazes de sonar os doces intervalos pitagóricos.

Em dado momento, Guido pediu o violino. Dispensava pelo menos naquela noite o acompanhamento do piano para executar a Chaconne. Ada entregou-lhe o violino com um sorriso de encorajamento. Ele não a viu, pois tinha os olhos no instrumento como se quisesse segregar-se com este e sua inspiração. Depois foi colocar-se no meio do salão e, voltando as costas para uma boa parte do pequeno auditório, aflorou levemente as cordas com o arco para afiná-lo e executou alguns arpejos.

Interrompeu-se e disse com um sorriso:

- Que coragem a minha! Não pego no violino desde a última vez que toquei aqui!
Charlatão! Votava as costas também a Ada. Eu a observava ansiosamente para ver se isso a aborrecia. Não parecia! Estava com o cotovelo apoiado sobre a mesa e o queixo posto na mão, em recolhimento para ouvir.

Depois, à minha frente, o grande Bach surgiu em pessoa. Jamais, nem antes nem depois, voltei a ouvir daquela maneira a beleza de uma música nascida de quatro cordas como uma estátua de Miguel Ângelo de um bloco de mármore. Só o meu estado de espírito era novo para mim e foi isso que me induziu a olhar para o alto, estático, como a uma coisa novíssima. Em vão lutava para manter a música longe de mim. Em vão pensava: ‘Bobagem! O violino é uma sereia e não é preciso que se tenha um coração de herói para fazer os outros chorarem com ele!’ Fui assaltado pela música que me prendia. Parecia exprimir todo o meu pensamento e dor com indulgência, mitigando-os com sorrisos e carícias. Mas era Guido que falava! E eu buscava subtrair-me ao seu fascínio, dizendo: ‘Para saber fazer isso basta dispor de um organismo rítmico, mão segura e capacidade de imitação; tudo o que não tenho, coisa que não constitui inferioridade, mas desventura.’

Eu protestava, e Bach seguia seguro como o destino. A apaixonante melodia das cordas altas mergulhava à procura de um basso ostinato que nos surpreendia, não obstante o ouvido e o coração já o pressentirem, dada a sua precisão! Um átimo mais tarde, e o canto se teria dissolvido antes de ser alcançado pela ressonância; um átimo antes, e ela se teria sobreposto ao canto, destroçando-o.

Guido encerrou a execução magistralmente. Ninguém aplaudiu, exceto Gioovanni, e por alguns instantes ninguém quebrou o silêncio. Depois, contudo, senti desejo de dizer algo. Como ousei fazê-lo diante de pessoas que já me haviam ouvido tocar? Era como seu meu violino, que em vão anelava produzir uma música assim, se pusesse a criticar o outro, em que – não se podia negá-lo – a música se transformava em vida, luz e ar.

- Magnífico! – disse, num tom mais de concessão que de aplauso. – Contudo, não entendo por que no final separou aquelas notas que Bach indicou como legatto.
Eu conhecia a Chaconne nota por nota. Foi numa época em que supunha que, para progredir, devia enfrentar empresas semelhantes, e durante muitos meses passei o tempo a analisar compasso por compasso de algumas composições de Bach.

Senti que os presentes não tinham para mim senão objeção e desprezo. No entanto, continuei, contra toda hostilidade:

- Bach – acrescentei – é tão discreto na escolha de seus meios que não admite adulterações desse tipo.

Eu provavelmente tinha razão, mas igualmente certo que não teria sabido usar o arco sequer para obter aquelas mesmas adulterações.

Súbitamente, Guido se mostrando tão despropositado quanto eu, declarou:

- Talvez Bach desconhecesse a possibilidade dessa expressão. É um presente que faço a ele.


Palavras-chave: violino, chacona, Bach, piano, interpretação, instrumento, temperamento

Referências
Autor: Isaias Malta
Fonte da Ilustração: Um violino no telhado

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts with Thumbnails