25 setembro, 2007

A música do sujeito

A eruditização da música ocorreu paralelamente à crescente autonomização dos compositores na busca de paradigmas que atendessem não ao gosto do público, mas a sua própria necessidade de rompimento com a hierarquização estética.
Bach com 3 de seus filhos

Com o decorrer dos séculos houve o deslocamento progressivo do foco de atenção da obra para o sujeito. Os autores passaram a valer mais do que suas obras, transcendendo o processo de criação a quaisquer prováveis imposições determinadas por limitações de caráter fisiológico dos ouvintes, num claro rompimento com estruturas arquetípicas a priori do belo em si mesmo. Como corolário da maximização do sujeito em detrimento da obra, as novas construções, libertadas das amarras que as prendiam ao “bom senso” determinado pelas tradições, afastaram-se paulatinamente do homem comum, uma vez que as suas leis internas já não atendiam àquelas, quiçá de origem orgânica. A arte do século XX, excetuando-se aquela de consumo imediato, se cerebralizou, o que a confinou a seletas platéias capazes de produzir as abstrações necessárias ao entendimento e deglutição de longas cadeias de notas privadas de contorno melódico, mas cuja beleza, mais do que formal, é estrutural. No mesmo contexto da arte como um todo, a música seguiu os mesmos paradigmas e dissolveu várias entidades mantidas intactas ao longo dos séculos.

A melodia, o timbre e o ritmo foram chocalhados de tal forma que perderam sua identidade. Melodias que não se cantarolam, timbres desierarquizados e ritmos aleatórios foram a grande conquista da música nova e a sua perdição para o ouvinte médio. Ela se “eruditizou” num movimento diretamente proporcional às crescentes preocupações de natureza cada vez mais individualistas dos compositores. Assim como a arte em geral abandonou os antigos arquétipos do belo em si mesmo, a música passou a trilhar caminhos experimentais, produzindo trabalhos em que a beleza reside mais na contemplação do esqueleto conceitual, do que no impacto que possa causar na sensibilidade emocional das pessoas. Dessa forma surgiu a música denominada erudita, que é aquela que separa o mundo entre um punhado de aristocráticos e requintados melômanos e a maioria de gentios surdos.

Mas a surdez galopante não submergiu apenas a música “estilo século XX”, ela retroagiu à criação dos períodos anteriores. É bem provável que um surdo apreenda um minueto de Mozart, uma dança do século XVIII, como “música de enterro”. Certamente um DJ seria vaiado numa festa rave, caso se deixasse tocar pelas famosas 4 notas introdutórias da 5ª sinfonia de Beethoven. No entanto, a atual música de festa não é uma negação à atonalidade de Arnold Schoemberg e não é uma resposta ao experimentos de Debussy ou Ravel e não chega a representar uma volta aos ideais de pureza estética renascentistas. Que música é essa, unicamente baseada em obsessivas sincopações sintetizadas eletronicamente, revestidas de algum contorno melódico extremamente simplificado? A sua existência se justifica e subsiste somente quando berrada através de pesados alto-falantes que irradiam milhares de watts, que podem produzir níveis de ruído acima de 120, já dentro do limiar da dor, para a obtenção de impactos sonoros suficientemente fortes para causar o efeito de socos no abdômen, rebaixando o status de ouvintes da platéia, para o de sacos de pancada.
CONTINUA...

palavras-chave: potência sonora, música erudita, hierarquia ética

Por: Isaias Malta
Fonte da ilustração: Music with Ease

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